Como o Iluminismo impactou a sociedade moderna?
*Por Gianpaolo Dorigo, professor do Anglo Vestibulares
Talvez fosse melhor começarmos a reflexão mudando a pergunta para "Como o Iluminismo criou a sociedade moderna?" Um ponto de partida para buscarmos uma resposta poderia ser o texto de Kant, de 1784, "O que é Iluminismo?" Nele o filósofo alemão anuncia o projeto das luzes: dar autonomia ao ser humano, livrando-o ao mesmo tempo do pensamento dogmático e dos poderes exercidos "pelo trono e pelo altar", isto é, pelos poderes político e religioso. Isto significa reconhecer a razão como única guia para a ação dos seres humanos, tanto no que se refere ao entendimento do mundo quanto às escolhas políticas.
Do primeiro caso, resulta a preponderância do conhecimento científico como guia mais adequado para orientar a ação do ser humano, sobretudo no trato com a natureza. Mitos, crendices ou a simples tradição perdem importância diante de um saber rigoroso e metódico, submetido à constante checagem e revisão crítica. Do terraplanismo à interpretação literal de textos religiosos, do horóscopo ao poder político hereditário, nada escapa ao olhar feroz da razão que promete emancipar o ser humano, livrando-o do charlatanismo e da superstição, colocando-o no caminho do progresso.
Do segundo caso, a filosofia política iluminista desenvolveu todo um projeto que resulta na afirmação de uma cidadania universal e da concepção de um estado soberano que representa os cidadãos e cujo pode se exerce em seu benefício. São herança da tradição iluminista as práticas políticas liberais, que resultaram no resgate e ressignificação de conceitos antigos como Democracia ou República, reinstituídos sob nova forma, valorizando-se eleições, constituição escrita, liberdade de expressão e separação de poderes (como forma de evitar o autoritarismo). A própria crítica ao liberalismo, que historicamente se apresentou sob a forma do marxismo, segue o projeto iluminista de busca de emancipação e de uma solução fundada em princípios racionais.
Todavia, há um impacto negativo da tradição iluminista. A construção da autonomia por cada ser humano – e o individualismo daí decorrente – gera situação de abandono ou não-pertencimento. Como resultado, busca-se a constituição de novos laços de comunidade, o que facilita a ascensão de discursos populistas que prometem o retorno a um passado mais seguro ou protegido. O saber torna-se pragmático, visto como simples meio para atingir objetivos materiais, por exemplo, através da destruição da natureza para usufruto humano. O saber pragmático esvazia o pensamento crítico, o que resulta em perguntas que ouvimos com tanta frequência nos dias de hoje: para que serve a Filosofia? Para que serve a História?
Finalmente, o Iluminismo e sua promessa de emancipação acabaram por "desencantar" o mundo. Sem espaço para o mistério – diante do discurso ininterrupto de uma razão que tudo explica – novas perguntas deixam de ser feitas. O Iluminismo acaba se transformando em seu contrário, no mito: promete uma explicação abrangente e definitiva do universo, mas que nunca dá conta de entender novos acontecimentos. Nas palavras do filósofo alemão Theodor Adorno, em texto de 1948, surpreendentemente atual: "Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade. A disposição enigmática das massas educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascínio de um despotismo qualquer, sua afinidade autodestrutiva com a paranoia racista, todo esse absurdo incompreendido manifesta a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico atual"
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