Sobrevivendo no Inferno: contundência e lugar de fala
*Paulo Giovani de Oliveira, professor do Anglo Vestibulares
Houve surpresa quando o álbum Sobrevivendo no Inferno, do grupo paulistano Racionais MC's foi incluído na categoria "poesia" da lista de leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp em 2020. Tal escolha certamente foi amparada pela publicação, em 2018, do livro "Sobrevivendo no Inferno" com as letras dos raps. A escolha causou polêmica: youtubers conservadores defenderam que o álbum faz apologia à criminalidade e as drogas, além de ser inexpressivo quando comparado a obras consagradas da tradição literária em nosso idioma.
A Unicamp não fez uma escolha aleatória. Sobrevivendo no inferno expressa valores culturais relevantes na sociedade brasileira do final do século XX. Lançado em 1997, foi a consagração dos Racionais como o maior grupo brasileiro de rap. Além de sua qualidade musical, os raps dão voz a toda uma população que se via afastada de representação nos meios de comunicação tradicionais. Uma das grandes realizações do álbum foi justamente consolidar uma voz de forte identidade coletiva, que assumia digna e orgulhosamente sua negritude.
São doze faixas em que os enunciadores têm forte poder de representatividade: são pretos, pobres e periféricos, que se opõem naturalmente às elites nacionais tradicionalmente brancas, abastadas e moradoras de bairros mais centrais. O cotidiano de miséria, de tráfico de drogas e criminalidade é retratado sem meias palavras, pondo em destaque a situação de guerra que é vivida por todos nós, mas vivenciada de maneira aguda por quem está nas periferias. A violência policial mostra como nessa guerra o Estado está do lado de quem tem mais poder, agredindo as populações negras. A situação retratada parece não ter mudado muito: pesquisa recente mostra que 63% das revistas policiais recaem sobre negros e pardos, embora essa parcela represente menos da metade da população brasileira.
A crueza com que se mostra essa situação de injustiça e de violência certamente incomoda a quem se conforta com a ideia de uma nação pautada na ideia de "democracia racial", e de uma sociedade harmônica tantas vezes exaltada no cancioneiro brasileiro – inclusive pelo samba. Sobrevivendo no inferno não adota essa atitude simpática e superficial. Prefigurando um receptor periférico e negro, familiarizado com tudo o que se apresenta, a obra apela para a criação de uma espécie de "ética da periferia", capaz de irmanar as pessoas ali envolvidas por meio da conscientização da violência e dos privilegiados que sempre ocuparam as posições de destaque.
Desde a capa a obra faz referência ao discurso religioso, com uma cruz amarela sobre um fundo negro e a citação de um salmo bíblico. A primeira faixa é um cover de "Jorge de Capadócia", canção de Jorge Ben Jor que é transposição da oração a São Jorge. É uma evocação a um santo guerreiro que luta contra o dragão da maldade. São vários os dragões que ameaçam a população representada no álbum: a criminalidade, as drogas, a sedução maldosa do consumismo capitalista. O álbum os enfrenta com uma lança verbal que se posiciona de maneira contundente, incorporando de maneira direta a variante linguística das periferias urbanas do final do século XX. Por tudo isso, Sobrevivendo no inferno é um marco da cultura brasileira e merece estar ao lado de outras grandes obras na lista da Unicamp.
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