Clarice faz 100 anos?
Por Fernando Marcílio, professor do Anglo Vestibulares
Em muitos livros didáticos brasileiros é possível encontrar a afirmação de que Clarice nasceu em 1925. Não é verdade: ela nasceu, de verdade, em 1920. Mas boa parte da responsabilidade por esse equívoco recorrente é da própria escritora, que costumava alterar a data de seu nascimento. Embora algumas de suas personagens idosas fossem simpáticas, ou instigantes (como a protagonista do conto "Feliz aniversário"), em uma de suas crônicas definiu a velhice como "um dos sofrimentos humanos". Aparentemente, Clarice, ela própria, não apreciava muito a perspectiva de envelhecer. Quer dizer, por ela, não estaria fazendo cem anos em 2020.
E, se era difícil precisar a idade, também a nacionalidade de Clarice Lispector era assunto fluido. Nascida na Ucrânia (vamos repetir: em 1920), migrou ainda na infância para o Brasil com a família, e, já adulta, obteve do governo brasileiro a naturalização. Mas talvez tenha restado algo de estrangeiro em sua obra. Pode-se, por exemplo, compará-la com a de Guimarães Rosa, seu colega de geração. A obra de Rosa escancara a sua brasilidade, na ambientação de seus contos e na fala de suas personagens. No caso de Clarice, também é bem perceptível a presença do Recife ou do Rio de Janeiro em suas narrativas. Mas, a despeito de espaços tão familiares, ela era dona de uma literatura de muitos lugares. Suas personagens poderiam ser habitantes de diferentes cidades do mundo. Talvez por isso, aliás, desperte o interesse em leitores de tantos países.
E, se a escritora tem mais idades e mais naturalidades do que o esperado, sua obra também comporta classificações diversas. Não é difícil encontrar quem considere a escritora uma representante de certa literatura feminina. O fato, porém, é que foi muito além desse rótulo, porque sua obra atinge homens e mulheres com igual intensidade, a despeito de personagens profundamente femininas, como as protagonistas de romances como Perto do coração selvagem e A paixão segundo G. H., e as de contos como "Amor", "Devaneio e embriaguez de uma rapariga", "A imitação da rosa", entre tantos outros. Um de seus últimos romances, A hora da estrela, traz uma nordestina miserável e alienada como personagem central, Macabea – e os dramas vividos por ela não são apenas femininos, mas de todos os explorados.
A verdade é que a literatura de Clarice é, acima de tudo, uma literatura humana. Tão humana, que parece ir além do próprio espaço e do próprio tempo. Nos anos 1960, começou a publicar suas crônicas (reunidas no livro A descoberta do mundo), e, desde então, aumentou consideravelmente seu leque de leitores, que, com o tempo, acabaram por se tornar seguidores apaixonados. É notável, por exemplo, que sua obra desperte o interesse de jovens do século 21. Certamente, ela deve gostar disso, porque é a prova de que não envelheceu
Será que Clarice Lispector está mesmo fazendo cem anos?
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