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“Cê manja de variação linguística, irmão?”

Dicas de Vestibular

24/08/2022 12h59

*Por Daniel Fonseca, professor do Anglo Vestibulares

Em uma de suas crônicas, Rubem Braga conta que um amigo estava em um café de Lisboa conversando com outros dois brasileiros, quando foram interrompidos pelo garçom: "que raio de língua é essa que estão aí a falar, que eu percebo tudo?". Verídica ou não, a anedota manifesta bem o sentimento misto que enfrentam os falantes de duas variantes de português tão distintas quanto a europeia e a brasileira: se, por um lado, há uma estranheza muito grande, manifestada pela expressão "que raio de língua é essa", por outro, é forçoso reconhecer que, com alguma atenção e paciência, há muitas semelhanças também, afinal "percebe-se", ou melhor, "compreende-se" tudo… ou quase tudo…

Essa narrativa explicita o cerne das variantes linguísticas, ao patentear como a língua portuguesa pode ser múltipla, sem deixar de ser a mesma língua. E essa multiplicidade não se resume às diferenças regionais, as mais famosas de todas, e óbvias a qualquer um que viaje pelo Brasil (não é preciso ir a Portugal, Moçambique ou Angola). Há ainda outros tipos de variações, e estarmos atentos a sua existência é o primeiro passo para obter um bom desempenho nos exames.

Há aqueles tipos de variações que estão associados à criação de nossa identidade na sociedade. As geográficas são desse tipo. Basta lembrar da divertida polêmica entre "biscoito" e "bolacha", que tanto anima as discussões entre paulistas e cariocas, para perceber que algumas palavras nos representam mais do que outras e ajudam a definir o que somos. Também a variação cronológica, que se dá no tempo, colabora para essa construção identitária, ao diferenciar duas gerações. Muitos leitores são capazes de se lembrarem de um avô ou avó que os chamavam de "pão" ou "broto", gírias que já estiveram "na crista da onda", mas agora soam um tanto quanto "démodés". Além da variação no tempo, as variações entre as classes sociais são importantes para a identidade dos indivíduos, e um artista como Adoniram Barbosa foi mestre em incorporar elementos populares à sua obra, fazendo-a capaz de sensibilizar intensamente o público: "Só se conformemo quando Joca falô/ Deus dá o frio, conforme o cobertô" (Saudosa Maloca).

Há outros tipos de variação que dependem do contexto de comunicação, e não da nossa identidade. São aquelas que resultam do meio usado para a comunicação (oral ou escrita), ou ainda do grau de formalidade em que ela se desenrola, ou seja, do grau de coloquialidade ou formalidade demandado pela situação. Uma vez que os estudantes estejam atentos a elas, será mais fácil reconhecer nos textos características típicas da oralidade (tais como abundância de repetições, hesitações, interrupções, autocorreções…), ou reconhecer expressões informais, ou avaliar se o grau de formalidade é adequado a situação de comunicação, habilidades frenquentemente presentes nos exames.

No entanto, a importância do estudo das variações linguísticas transcende qualquer prova, pois ao nos darmos conta da multiplicidade inerente a toda língua natural, conseguimos vencer o preconceito linguístico, que é a tendência a desqualificar as variantes não-padrão e, consequentemente, desqualificar também os indivíduos e os grupos sociais que delas se valem. Estaremos mais próximos, nesse momento, de uma situação na qual o brasileiro de uma região não irá desqualificar a variedade de outra; os idosos não desdenharão a linguagem dos jovens (e vice-versa); os estudantes perceberão a riqueza da língua popular usada no seio de sua família e, ao mesmo tempo, a importância de se dominar elementos da norma-culta, para o exercício da cidadania, em situações formais. Um Brasil amplamente consciente das variações linguísticas será muito melhor para se viver. Cabe aos educadores disseminar essa consciência.

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