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Sobre a impermanência dos vírus

Dicas de Vestibular

15/09/2021 11h03

*Por Gisele Cova, professora do Anglo Vestibulares e do Colégio Anglo São Paulo

Em certa passagem de Crátilo, um dos grandes diálogos de Platão, Sócrates menciona a transitoriedade de tudo apresentada por Heráclito: "Heráclito diz, como sabes, que tudo se move e nada permanece em repouso, e compara o universo às correntes de um rio, dizendo que não podes entrar duas vezes no mesmo rio." Se, por um lado, pode ser reconhecida a questão da instabilidade e fugacidade do ser nessa fala, por outro, também deve ser destacada a abertura à reflexão sobre identidade. Essas questões relacionadas ao ser e ao tempo se revelam adequadas também para analisar as impermanências características dos vírus: as tão comentadas variantes destes. É da mais alta importância entender a transitoriedade inerente aos vírus pois, a partir dessa reflexão, pode-se melhor lidar com a realidade que nos assola. Dito de uma forma bastante direta: fechar os olhos para um problema não faz com que ele desapareça. Enfrentemos o que precisa ser desvendado.

Os vírus, incluindo o SARS-CoV-2, responsável pela pandemia de Covid-19, apresentam algumas características próprias da vida. É possível dizer algumas porque os vírus colocam as classificações biológicas em xeque porque não apresentam características tão caras ao reconhecimento de vida. Cabe aqui mencionar que muitos biólogos que se dedicaram à reflexão sobre vida, tal como a estadunidense Lynn Margulis e os chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, não reconheciam vida nos vírus, porque, para eles, um ser deve ser identificado como vivo se apresentar a capacidade de fazer a si mesmo, manter seu próprio metabolismo, ou, como colocam, de apresentar autopoese.

As partículas virais não apresentam células, logo não são capazes de realizar metabolismo e são incapazes de se replicar de modo independente. Porém, ao mesmo tempo que parecem tão inertes, podem se replicar quando infectam células de um ser vivo. Para tanto, fazem uso do metabolismo da célula hospedeira e, por isso, são considerados parasitas intracelulares obrigatórios. E, no limite, só conseguem se reproduzir porque apresentam material genético. Oras, capacidade de reprodução e presença de material genético são características próprias da vida, não? Portanto, mais importante do que apresentar uma definição resolvida sobre a posição dos vírus nas classificações biológicas é entender quais características de um ser vivo os vírus têm — ou não. Essa sugestão é válida tanto para entender melhor o SARS-CoV-2 quanto para responder a uma questão de vestibular.

A rotina da população tem sido dependente da rotina de replicação do SARS-CoV-2 — podemos mesmo reconhecer uma relação de causa e efeito. Cada vez que o vírus consegue entrar em uma célula, passa a controlar as atividades do hospedeiro e a conduzir a síntese de novas moléculas próprias do vírus. Isso significa que ele é capaz de originar centenas a milhares de outros a partir da estrutura de uma única célula.

O SARS-CoV-2 consegue entrar nas células humanas a partir de uma proteína de seu envelope, identificada como espícula, ou spike, em inglês. Para tanto, depende do reconhecimento de proteínas da membrana plasmática. Uma vez dentro da célula, o parasita impede a atividade regular dos ribossomos e passa a controlá-los por meio de suas próprias proteínas. Isso permite que a célula forneça estrutura suficiente para a replicação do genoma viral que, neste caso, trata-se de RNA, e para a subsequente síntese de proteínas a partir deste RNA. Ocorre que na produção de novas moléculas de RNA pode haver erros, ou seja, podem ocorrer mutações nesse processo. E as mutações, por sua vez, podem originar novas proteínas do vírus. Quando isso acontece, eles podem se tornar mais ou menos letais, mais ou menos transmissíveis. Essa aleatoriedade das mutações é inerente ao processo evolutivo, e os vírus não escapam disso.

Assim, cada vez que a circulação deles é mantida em uma população, aumentam as chances de surgirem variantes. O pior cenário se dá quando o resultado é positivo para o vírus e negativo para nós. Nesse sentido, a evolução tende a favor dos vírus, não do hospedeiro. Surgem, então, tantas e tantas variantes, algumas mais preocupantes.A variante Delta, detectada pela primeira vez na Índia, é uma das que merece atenção. Trata-se de uma variação do SARS-CoV-2 porque é produto de mutações aleatórias que resultaram em uma spike mais eficiente, ou seja, a variante Delta tem maior eficiência na invasão das células, além de maior eficiência de replicação nas células, resultando em cargas virais muito maiores nas células humanas. Ainda, é um vírus que infecta as vias aéreas superiores. Tudo isso favorece a eficiência de transmissão, o que ocorre significativamente antes de surgirem os primeiros eventuais sintomas da doença.

Um informe do CDC, Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, apresenta um dado alarmante: a Delta é capaz de se espalhar mais que o ebola, gripe comum e varíola. Com a livre circulação dos vírus na Índia, no Brasil e em tantos outros países, é esperado que surjam novas variantes, uma vez que erros casuais ocorrem durante a replicação do material genético. E algumas dessas variantes, como a Delta, tendem a determinar novos picos da doença, provocando novas ondas de letalidade e levando a novas medidas de contenção na população, tal como voltou a ocorrer no Reino Unido recentemente.

Essas reflexões oferecem muitos contextos para a elaboração de diversas questões de vestibulares. Podemos esperar perguntas que mergulhem no processo de tradução proteica, esperando a interpretação dos resultados de uma mutação gênica ou que façam uso da diferença entre os conceitos de genoma e código genético, largamente utilizados como sinônimos em diversos meios de comunicação. Podemos também contar com uma questão evolutiva ou mesmo que promova a reflexão sobre a controversa classificação dos vírus. Enfim, se o desejo é por uma sociedade crítica, atuante e livre, é importante que as Universidades contribuam para essa formação. Logo, o processo seletivo deve buscar cidadãos que saibam refletir sobre questões científicas.

O conhecimento é essencial para a superação da corrida evolutiva travada entre nossa espécie e as diversas cepas de SARS-CoV-2 ou de qualquer outro vírus que nos ameace. A transitoriedade heraclitiana é inerente ao modo de replicação dos vírus. Essas partículas que nos parasitam são fugazes, impermanentes. Precisamos partir dessa premissa se quisermos controlar esta e quaisquer outras pandemias, e, para tanto, há que se fazer uso da Ciência e das armas — entenda-se "vacinas" — que temos à disposição para enfrentarmos essa batalha.

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