Autores, leitores e concursos
Nos exames vestibulares e nos concursos públicos, são comuns questões de interpretação de texto baseadas em obras de autores vivos: poetas, romancistas, jornalistas, cronistas, compositores populares. Não é raro surgir a dúvida: será que os autores desses textos seriam capazes de resolver essas questões?
Na semana passada, o debate voltou à tona, quando um candidato a um concurso organizado pela UFRJ não concordou com dois gabaritos divulgados pela Banca e resolveu consultar, pelas redes sociais, o compositor Nando Reis, autor do texto usado nas questões (a canção "Vou te encontrar"). Nando Reis respondeu o fã e, para aumentar a polêmica, também disse que discordava das respostas oficiais. Veja aqui.
Bom, a verdade é que as questões não são boas. Talvez nem a Banca, nem Nando Reis estejam com a razão. O mais prudente seria mesmo anulá-las, como mostraremos a seguir. Mas, antes, vale fazer algumas reflexões sobre o que é a interpretação de um texto.
Ao contrário do que muita gente pensa, poucos escritores têm controle pleno e total sobre o que escrevem. Depois de publicado, o texto ganha autonomia e passa a depender pouco da vontade do escritor. A intenção de quem escreve, se não se manifesta no que está escrito, não importa para quem lê.
O grande intelectual italiano Umberto Eco, em seus Seis passeios pelos bosques da ficção, afirmava: "Deixem-me dizer-lhes que não tenho o menor interesse pelo autor empírico de um texto narrativo (ou de qualquer texto, na verdade). Sei que estarei ofendendo muitos dos presentes que talvez dediquem boa parte de seu tempo à leitura de biografias de Jane Austen ou Proust, Dostoievsky ou Salinger, e também sei perfeitamente como é maravilhoso e empolgante vasculhar a vida privada de pessoas reais que amamos como se fossem nossos amigos íntimos."
Podemos expandir a ideia de Eco e dizer que as opiniões do próprio autor a respeito de um texto são tão relevantes quanto qualquer outra opinião. O escritor de carne e osso não tem mais autoridade do que ninguém para opinar. Se fosse necessário conhecer os pensamentos de um autor para interpretar o que ele escreveu, como poderíamos ler Homero, Shakespeare, Dante ou Gil Vicente?
Mas isso não pode caminhar para o relativismo interpretativo, como se toda leitura fosse igualmente válida. De novo recorrendo a Eco, textos literários sobretudo são "obras abertas", que aceitam mais de uma leitura, o que não significa que qualquer leitura é admissível.
Uma leitura, para ser válida, precisa basicamente: partir de elementos explícitos na superfície textual, considerar as relações internas de sentido e recorrer a informações de repertório da medida da necessidade. Não é incomum que isso nos leve a mais de uma leitura possível, e elas são todas aceitáveis, desde que as hipóteses interpretativas sejam confirmadas pelo texto como um todo, e não por passagens isoladas.
Feitas essas observações, vamos às questões do concurso da UFRJ. Em uma das questões, fala-se sobre o emprego das reticências no refrão da canção: "Vou te encontrar… / Vou te encontrar". A Banca não cita a fonte da letra da canção, e Nando Reis afirma que as reticências não existem no original. Já temos um motivo para anular a questão.
Mas o problema, nesse caso, é mais grave. A Banca afirma que as reticências indicam "hesitação"; Nando Reais prefere "certeza". As outras opções eram "pausa", "segurança" e "reflexão". Nenhuma resposta se sustenta. Nesse caso, as reticências, se as houvesse na letra original, indicam a expectativa, o desejo, a vontade do eu lírico de encontrar a interlocutora, o que é confirmado pelas locuções verbais no futuro. Não se trata de certeza, pois não há certeza sobre ações futuras, nem de hesitação, pois o eu lírico tem muito mais traços de determinação do que dúvida.
Na outra questão, pergunta-se qual o significado mais adequado para a palavra "vivo" no verso "Vivo, como você quer". As opções eram: "a) perdurar, b) aproveitar a vida, c) comportar-se em vida, d) sustentar-se, e) morar". A Banca acha que a resposta é A. Nando, D. De novo, uma questão ruim. Traduzir o significado de um adjetivo ("vivo") por meio de verbos já causa estranheza, e nenhum desses verbos explica o sentido do verso, que depende da estrofe inteira: "Sofro, como qualquer um / Rio, quando estou feliz / Homem, dessa mulher / Vivo, como você quer". No percurso figurativo da canção, o estar vivo está associado a sofrer e a rir, a conviver com emoções díspares, mas mantendo as esperanças de encontrar a interlocutora. Nenhuma alternativa contempla essa interpretação.
A polêmica com Nando Reis repete o que já ocorreu com Rubem Alves e com Mário Prata. Provavelmente, não será a última. Mas para quem trabalha com concursos e exames de seleção, o mais importante não é saber o que os autores dos textos pensam. O mais importante é, sim, que as questões tenham enunciados claros, questionamentos precisos e interpretações sustentáveis. Nesse caso, a UFRJ falhou. Cabe a nós, professores, apontar os equívocos.
Quanto a Nando Reis, que ele continue escrevendo e compondo. Ele faz isso bem. Também somos seus fãs.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.