Quando a escravidão deixou de ser necessária no Brasil
Por Raphael Amaral, professor do Anglo Vestibulares
Desde o estabelecimento da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888 (a Lei Áurea), a escravidão está proibida no Brasil. A lei foi uma enorme conquista. Ela foi a vitória das décadas consecutivas de intensas mobilizações da população negra brasileira no século XIX em oposição ao escravismo — ações fortalecidas e legitimadas pelo movimento abolicionista desse período.
Entretanto, a lei não criou mecanismos jurídico-legislativos para assegurar à população negra os mesmos direitos e as mesmas possibilidades de exercício da cidadania garantidos à população branca. Por que ela não fez isso? E, se ela foi uma lei insuficiente nesse sentido, como garantir tais direitos? Como acabar com as desigualdades em uma sociedade profundamente racista na qual mesmo as pessoas que não defendem abertamente o genocídio da população negra dormem tranquilamente apesar de saber que ele se perpetua década após década?
Auxilia nas interpretações sobre essas complexidades o fato de que a Lei nº 3.353 não era contra o racismo, que, no Brasil, somente foi criminalizado em 1951. Foi uma lei especificamente contra a escravidão. Nomes destacados do abolicionismo também eram racistas e acreditavam na inferiorização imposta sobre a negritude. O único aspecto que os incomodava era a escravidão em si.
Mas, se a liberdade da população negra estava assegurada, por que não ocorreu a imediata ascensão social dessas pessoas? Isso pode ser explicado pelo fato de que o suposto "mérito individual" não se estabelece em uma sociedade moldada por quatro séculos consecutivos de escravidão. Não há igualdade de oportunidades se a sociedade está fundamentada em graves desigualdades econômicas, estas alicerçadas em opressões raciais. Isso se revela, por exemplo, nas sucessivas Constituições na República acompanhadas de códigos penais que criminalizavam parte significativa das sociabilidades da população negra, justificando tanto o encarceramento em massa quanto a condenação moral dessas atividades.
O que resta da meritocracia quando a maior parte da sociedade está submetida a dinâmicas econômicas que afogam o indivíduo na miséria e na ausência de oportunidades? Qual talento pode se desenvolver livremente quando as estruturas jurídicas enquadram as atividades cotidianas desse mesmo indivíduo como ações criminosas?
A amistosa crueldade da sociedade brasileira consiste no fato de que não é necessário que haja pessoas escravizadas para manter as lógicas de opressão racial. Bastou haver mecanismos para assegurar que continuasse vigorando a principal herança colonial brasileira: naturalização da desumanização sobre a população negra.
Trata-se de uma aceitação fundamental ao entendimento sobre como o Brasil funcionou ao longo de sua História. É ela que mantém as atrocidades às quais nos acostumamos em nosso cotidiano. A desumanização, somada à criminalização, resultou em sucessivas chacinas impunemente cometidas por agentes do Estado em zonas periféricas. Se também considerada a precariedade material da população negra, explicam-se as piores condições de vida e os empregos sub-remunerados e sem direitos assegurados. Mais expostas a riscos — devido à precarização já mencionada — e sem acesso a cuidados de saúde essenciais, hoje pessoas negras são a maior parte das vítimas do coronavírus. O elo comum entre esse e outros casos da sociedade brasileira é a aceitação à degradação das vidas negras.
A criminalização, o empobrecimento, o encarceramento e o genocídio impostos à população negra no Brasil desde a proibição da escravidão possuem uma relação direta com as limitações da Lei nº 3.353. Elas refletem uma sociedade em que historicamente se mostrou mais importante mascarar o ódio aos corpos negros em vez de reorganizar as engrenagens de poder para impedir que ele continue centralizado. O Brasil é o resultado do racismo estrutural que não depende mais de chicotes e correntes para perpetuar lógicas do período colonial.
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