Sai Eça, entra Eça
Todos os anos, a Fuvest divulga a sua tão esperada lista de leitura obrigatória. Para os exames de 2019, é o caso de se perguntar: há algo de novo nessa lista? Entre as listas para os exames de 2018 e 2019, o escritor português Eça de Queirós foi substituído por… Eça de Queirós. O romance A cidade e as serras permaneceu como leitura obrigatória até os exames de 2018. Para o vestibular deste ano, com ingresso nas universidades em 2019, a Fuvest solicita A relíquia, do mesmo autor. É impossível evitar a pergunta: qual a razão dessa troca?
As respostas poderiam ser muitas, inclusive a mais evidente: A relíquia é um grande livro. No entanto, não conta entre as obras mais conhecidas do autor, aquelas que exercem uma sedução maior sobre os estudantes, como O primo Basílio ou O crime do Padre Amaro. Outra resposta, igualmente aceitável, diz respeito à renovação do repertório. Mas, neste caso, pode-se perguntar por que essa renovação se restringiu ao romance de Eça, já que nenhum outro livro da lista foi trocado. Talvez se pudesse falar em alguma diferença de estilo. Contudo, fato é que o escritor foi relativamente ousado nas duas obras, permitindo-se certos desvios das convenções realistas: em A cidade e as serras, através de imagens idílicas do campo e da natureza; e, em A relíquia, em uma inverossímil viagem no tempo, que foi, de fato, condenada por parte da crítica realista do século XIX.
A leitura de qualquer obra de Eça de Queirós costuma trazer algumas dificuldades aos alunos; vencê-las é bastante compensador. A insistência do autor em descrições demoradas, por exemplo, atende ao projeto realista de aproximar o relato da realidade a que se refere. Se o leitor se dedica a construir na sua imaginação o ambiente ou a personagem que está sendo descrita, conseguirá tirar todo proveito desse recurso. O humor de Eça também está sempre presente, mas sua sutileza por vezes passa despercebida – o que é um bom teste para o aluno atento e sensível. Composição de personagens, expressões que se repetem, gestos explícitos, pensamentos inconfessáveis são outros tantos elementos do estilo de Eça de Queirós para os quais o leitor deve voltar sua atenção.
No caso específico de A relíquia, é bom refletir sobre duas questões que o livro levanta. A primeira diz respeito às reflexões em torno da religiosidade que a narrativa suscita. O leitor é levado a duvidar das suas próprias certezas, místicas ou não. Só essa postura polêmica já bastaria para que o estudante se sentisse estimulado a encarar essa substituição. A segunda questão é colocada pela epígrafe da obra: "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia". Ela se refere aos fatos do enredo, mas pode ser estendida para uma concepção estética: assim como esse manto, a fantasia, isto é, a arte, não esconde a verdade, mas auxilia a mostrá-la em toda a sua nudez. Essa lição de Eça ilumina não apenas a leitura de A relíquia, mas de toda a lista de livros. E vale para todas as listas.
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